Marco Antonio Bin

Sobre os passos indispensáveis

Os esforços acabam sendo de grande valia, quando compreendemos a necessidade de um propósito. No caso, a prova de hoje, com aquela sala complicada mostrou-me ao final das contas o caminho didático a ser trilhado. A certa altura, resolvi caminhar pela sala, por entre os grupos, pois vi que estendiam exageradamente o tempo de prova. Optei livremente por perguntar como iam e diante de uma ou outra dúvida, propunha didaticamente uma reflexão, contornando o problema, mas deixando-o ao alcance dos olhos e do coração. Foi incrível como demonstraram vividamente romper com os impasses, de algum modo avançando na escritura. Um aluno me chamou a atenção, S., o mais irrequieto da sala. Consultou-me sobre seu percurso na resposta e como havia algumas impropriedades, tomei a decisão de lhe projetar a teoria de Bauman no contexto da realidade cotidiana. Desenhei (sim, desenhei) um conjunto de guetificações miseráveis e de luxo, nomeando-as devagar, olhando-o com firmeza, com a conhecida firmeza guevarista, endurecida pero con ternura, como esforço para não lhe deixar escapar a atenção, indagando-lhe se aqueles elementos, aquela conformação espacial não se reproduziam na ambiência da cidade. Ele me acompanhou atento e ao final interpretou o aprendizado com suas palavras. Apenas lhe disse que me parecia um bom caminho para explorar a questão. De pronto, ele manifestou uma luminosidade convincente, dizendo que agora era possível entender a proposta do Bauman, maravilhoso Bauman. Voltou para a carteira e respondeu a questão, que ao final das contas, me pareceu muito bem resolvida. E assim foi com um conjunto de outros alunos, sem oferecer respostas objetivas, mas conversando sobre os temas, indagando-lhes sobre o entendimento das coisas. Naquele momento não pensei no tempo, o tempo limite, impositivo, cotidiano, que nos cerceia e nos demanda por resultados. Ali, diante dos impasses represados, em plena avaliação, optei por abandonar o que me pareceu minha indiferença na atividade como educador, incorporando uma prática dialética de esclarecimento, restabelecendo de algum modo o fluxo do aprendizado a partir de uma inesperada circunstância. A vitalidade e o prazer da apreensão do mundo ao redor se expressavam na mudança de humor daqueles semblantes outrora apáticos, de golpe empolgados com seus próprios interesses.

A dialética não nos escapa, e se coloca como uma saudável alternativa para o educador despertar o interesse do educando pelo conhecimento. O universo de alunos universitários em que atuo é resultante dos estratos sociais em ascensão, que nos últimos dez anos se beneficiaram de programas governamentais para ter acesso ao ensino superior. Em média, são jovens não tão jovens, moram em bairros distantes, são trabalhadores com salários de até três salários mínimos, com significativa presença negra. De outro lado, as mensalidades mais baixas também representam um atrativo a mais para que uma parcela da sociedade que não frequentava o terceiro grau possa fazê-lo de maneira massiva.

Em razão das dificuldades na formação educacional e pelas duras circunstâncias de vida – como afirmei acima, são em grande parte trabalhadores - estes jovens oferecem maior resistência diante das práticas curriculares formais, sem grande satisfação com o aprendizado. Tive a oportunidade de conversar com V., um dos mais renitentes dentre os alunos, que administra duas lojas de chocolates, uma delas na Oscar Freire, e que como a maioria, estuda visando melhores perspectivas profissionais. Quando lhe perguntei por que não conseguia se concentrar em sala de aula, disse-me que tinha dificuldades em compreender a lógica do processo. “Não vejo o porquê ouvir certos professores, que falam, falam e não me despertam o menor interesse no conteúdo”. Os argumentos não me pareceram justificativas pobres para seu desempenho, ao contrário, ao colocá-los de modo consistente, me convidava a sondar com mais proximidade as suas dificuldades. Minha experiência, envolvendo os alunos de seis classes, me permitiu concluir já na segunda ou terceira semana letiva que seria simplesmente impossível aplicar o conteúdo acadêmico sem que realizasse algumas importantes modificações pedagógicas. Assim, em Teoria Política, por exemplo, para discutir Platão me apoiei nas linguagens poéticas, declamando Alberto Caeiro, “A grande poesia está pronta. A poesia é a Terra. A poética do silêncio (as palavras nomeiam, rotulam, mascaram), Caeiro objetiva um coloquialismo puro, nada plástico, visceralmente antipoético, pressupõe o calar e o não-pensar (...)”1. Com Maquiavel, foi importante a aproximação com suas artimanhas políticas explicitadas em O Príncipe e transportá-las à realidade política de nosso tempo.

Portanto, avaliar a importância de proporcionar discussões com novas abordagens foi fundamental para o desenvolvimento do aprendizado. Como educadores, ao reproduzirmos uma prática educadora isentos da realidade vivenciada, não estamos mais do que alimentando o que Paulo Freire chama de consciência falsa de mundo.Se apenas nos habilitamos a reproduzir o conhecimento de maneira formal e distanciada, estaremos de mãos dadas com uma prática domesticadora do aprendizado. Nela, os alunos simplesmente são enchidos com nossas palavras e cobrados nos exames finais, sem o prazer da participação ativa no processo.

A consciência falsa do mundo, a meu ver, é essa luz baça que não ilumina e não iluminando, deixa de elucidar. Não elucidar não se esclarece, e sem esclarecimento não há mobilização, não há o necessário engajamento nas questões urgentes do mundo. Por isso a importância da consciência livre, que desvela a realidade sempre a partir da reflexão crítica. Como afirma o professor Paulo Freire,enquanto na educação domesticada há uma necessária dicotomia entre os que manipulam e os que são manipulados, na educação para a libertação não há sujeitos que libertam e objetos que são libertados. (FREIRE, 1979, p.89)

Ou seja, um processo é prescritivo, imposto de modo a reproduzir uma estrutura curricular engessada, em que um lado estabelece como deve ser o aprendizado, e o outro se coloca passivamente na expectativa. Ao passo que o outro nada mais é do que um difícil, porém gratificante processo dialógico, onde educador e educando interagem com suas visões de mundo, para o saudável desenvolvimento na compreensão da realidade.

Minha experiência com os poetas dos saraus periféricos em São Paulo, por exemplo, se constituiu em uma excelente demonstração de como a prática educacional pode envolver um grande número de pessoas, reunidas ao redor das mesas de um bar, a partir da performance poética. O texto declamado a explicitar pedagogicamente o mundo da quebrada, promovendo a reflexão crítica e coletiva.

A escritura como um ato produzido por um narrador (poeta) que declama performaticamente. Essa escritura se formula a partir dos versos e prosas que represam a emoção do cotidiano (...) e que se voltam para o outro na comunidade e bem por isso se preocupam em esboçar o sentido do mundo ao redor, essa impressão fugidia transformada em algum sentimento que desvele um evento cotidiano, e que faça todo sentido para o outro. (BIN, 2009, p. 13)

A prática da educação não está, pois, descolada da vida cotidiana, seja na sala de aula ou na mesa de um bar. Em nossos dias, a informação nos alcança por todos os lados, em tempo real, descentralizada dos oligopólios midiáticos e assim, afetando de modo mais intenso e direto as nossas vidas, oferecendo novas perspectivas para a formação do cidadão. Cabe ao educador acompanhar esse ‘tempo digital’ e saber utilizar essas ferramentas, interagindo mais adequadamente com as novas gerações de educandos e evitando a defasagem da escola nos acessos aos bens simbólicos, que na opinião da socióloga Beatriz Sarlo, “concorre em condições de derrota com os meios de comunicação em massa”, ou no caso mais presente, das redes sociais. (SARLO, 2004, p.112)

Nada mais oportuno do que o bom-senso do educador na abordagem de um assunto que desperte o interesse dos educandos, e os mantenha atentos e participativos no debate. Nada mais interessante do que a opção humanista do educador em seu esforço parar dinamizar a consciência do mundo, propiciando a reflexão como um elemento preponderante nas aulas, superando a dispersão ou a sedução que as plataformas digitais portáteis, por exemplo, possam proporcionar, distanciando os alunos da prática educativa.

Para o professor Paulo Freire, a consciência da prática educativa passa pelo respeito à autonomia, à dignidade e à identidade do educando. Nossas respostas a estas situações tempestivas produzem marcas duradouras nos alunos, O professor autoritário, o professor licencioso, o professor competente, sério, o professor incompetente, irresponsável, o professor amoroso da vida e das gentes, o professor mal-amado, sempre com raiva do mundo e das pessoas, frio, burocrático, racionalista, nenhum desses passa pelos alunos sem deixar sua marca. (FREIRE, 2011, p.64)

Retornando ao exemplo inicial deste texto, após a improvisada prática educativa com os educandos e da resolução das questões de prova, eles se retiraram da sala com aquela consciência (ou impressão) de que tinham capturado o que não conseguiam antes, ao longo do curso, compreender. Ainda assim saíram preocupados, mas com uma leveza para eles mesmos, inesperada. De minha parte, nunca uma prova me pareceu um instrumento tão propositivo e eficiente para fazê-los avançar sobre um adorável enigma. Fomos a última sala a deixar o andar, já bem tarde da noite, e de algum modo percebi a necessidade do esforço pedagógico, ainda que em um momento supostamente indevido. Qual é o tempo definido para o aprendizado e compreensão das coisas? Eu os tinha (na verdade, ainda os tenho) como desinteressados sem causa, mas por um momento pude perceber que uma atenção mais intensa e cuidadosa pode ao menos amenizar tensões insuperáveis. Um dos alunos me indagou sobre o que era esse estranhamento diante de uma cultura distinta, que Laplantine tão lindamente aborda em seu texto. E conversamos sobre isso. Outros participaram, ouviram e comentaram cada qual à sua maneira, a voz que se articula e que se faz ouvir! Não lhes dei respostas, apenas propus caminhos para um desejo de ir mais além dos horizontes conhecidos. Avançar por veredas difíceis, mas construtivas, sem receios, e promover a eliminação do medo, dos preconceitos sobre o desconhecido. Tudo pode parecer um longo percurso sem atalhos, mas sinto a necessidade de descobrir quem são aqueles alunos, e por algum caminho fazer cumprir os desígnios de uma escolha, ou seja, contribuir para uma discussão que faça despertar as dúvidas, sem deixar de estimular a confiança.

1 - Aqui uma rápida referência às aulas do grande educador Fernando Segolin, da Comunicação e Semiótica da PUCSP.


Referências Bibliográficas

BAUMAN, Zygmund. Comunidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores, 2000;

BIN, Marco Antonio. As Redes de Escrituras nas Periferias de São Paulo – a palavra como manifestação de cidadania, São Paulo, 2009, 200 p. Tese em Ciências Sociais (Sociologia) defendida no PEPG de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de SP (PUCSP);

FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade e outros escritos. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 1979;

_____________. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro, Editora Paz e Terra, 2011;

LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo, Ed. Brasiliense, 2012;

POCHMANN, Marcio. Desenvolvimento, Trabalho e Renda no Brasil. São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo, 2010;

SARLO, Beatriz. Cenas da Vida Pós-Moderna. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2004.