Danilo Hernandes

Ondjaki e Manuel Bandeira – literatura e memória

“Se fosse dor tudo na vida, seria a morte o sumo bem. Libertadora e apetecida, a alma dir-lhe-ia ansiosa: - ‘Vem!(...) (A vida assim se afeiçoa)”. A literatura remete-se constantemente à memória e às estruturas que a organizam porque é da vida que extrai o seu substrato essencial. Como nos versos de Manuel Bandeira, os autores não raro usam de elementos do relato de memória ou da reflexão que fazem baseados em suas experiências. Afinal, muito da vida não é dor, mas, ao contrário, “a vida vai tecendo laços quase impossíveis de romper: tudo que amamos são pedaços vivos do nosso próprio ser” e é nela que se encontra o arcabouço para a produção literária.

A doença, a morte e as memórias de infância são fundamentos da obra poética de Manuel Bandeira. O jovem escritor angolano Ondjaki, por sua vez, toma por base sua meninice nos anos 1980, em Luanda e é sob a ótica de criança que ele nos apresenta as mudanças políticas e as descobertas que a infância traz em: Bom dia camaradas, AvóDezanove e o segredo do soviético e Os da minha rua.

“Não construí o poema, ele construiu-se em mim, nos recessos do subconsciente, utilizando as reminiscências da infância”. A descrição de Manuel Bandeira sobre o processo de criação de “Vou-me embora pra Pasárgada” revela que existem, nos versos de sua obra, segredos intrincados que estão vinculados à experiência de vida do autor. Essa relação é levada por Bandeira ao ponto de deixar-nos um livro de memórias, Itinerário de Pasárgada, em que abre ao público quais ocasiões de sua vida inspiraram ou serviram de fomento a algumas das suas mais famosas obras poéticas.

As linhas do poema transmitem ao leitor a universalidade do desejo: “lá sou amigo do rei”, “lá a existência é uma aventurai”. Bandeira permite que se encontre em Pasárgada aquilo que nos falta. A ele, tendo sido o poema escrito no auge de sua internação por conta da tuberculose, as imagens que almeja são relacionadas a uma vida inacessível nos sanatórios por que passava: ginástica, bicicleta, prostitutas, banhos de mar. A nós, os versos abrem de todo as possibilidades para que nas idealizações de nossas Pasárgadas encontremos íntimos desejos, de forma completa, como só a literatura os apresentaria.

Na representação da vida, Manuel Bandeira torna sua poesia próxima do leitor pois cria o afeto que é próprio das experiências compartilhadas. Em “Infância”, o autor busca suas mais antigas reminiscências, pois “havia descoberto que a poesia está em tudo – tanto nos amores, como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas, como nas disparatadas” 3. Relembrando as próprias vivências, aproxima-se de uma vivência universal: as casas em que morou podem ser as casas em que moramos. Suas ruas e expectativas, por que não seriam as nossas também, se uma das funções do texto literário é nos fazer sonhar? “Com dez anos vim para o Rio/ Conhecia a vida em suas verdades essenciais/ Estava maduro para o sofrimento/ E para a poesia.i” Na ambiguidade final do poema, reconhecemos um pedaço da essência da nossa existência: a poesia é o sofrimento e é também o seu antídoto.

Essa ambiguidade está vastamente presente na obra de Manuel Bandeira: a poesia mistura-se ao sofrimento da realidade e, ao mesmo tempo, é uma possibilidade de salvação. O medo causado pela proximidade da morte, em uma época na qual a tuberculose era causa de mortandade quase certa, tornou-o um poeta capaz de transformar em versos algumas das maiores angústias do ser humano. E da descoberta da morte e a provável iminência de sua própria, surgem textos como: “Depois meu avô... Descoberta da morte!” em “Infância” ou “Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo/ Minha avó/ Meu avô (...) - Estão todos dormindo/ Estão todos deitados/ Dormindo/ Profundamentei” em “Profundamente”. Segundo o próprio poeta: “a morte de meu pai e a minha residência no morro do Curvelo de 1920 a 1933 acabaram de amadurecer o poeta que sou. Quando meu pai era vivo, a morte ou o que quer que me pudesse acontecer não me preocupava, porque eu sabia que pondo a minha mão na sua, nada haveria que eu não tivesse a coragem de enfrentar. Sem ele eu me sentia definitivamente só”ii. E mais uma vez, a literatura nasce da experiência humana mais inexorável: a relação com nossa própria finitude.

Nem só na melancolia, a poesia de Manuel Bandeira se aproxima das vivências por que passou. A infância traz suas melhores lembranças e as coloca exatamente no que há de prosaico, de cotidiano: “Quando ontem adormeci/ Na noite de São João/ Havia alegria e rumor/ Estrondos de bombas luzes de Bengala/ Vozes cantigas e risos/ Ao pé das fogueiras acesas” (“Profundamente”) ou “É que em teu coração ainda perdura/ Entre doces lembranças conservado, / Aquele afeto simples e sagrado/ Da nossa infância, ó meiga criatura 1” (“A minha irmã”). A velhice, no entanto, traz a sapiência e o apaziguamento “O vento varria os meses/ E varria os teus sorrisos.../ O vento varria tudo!/ E a minha vida ficava/ Cada vez mais cheia/ De tudo.1” (“Canção do vento e da minha vida”).

A velhice... E a vida vai imitando a poesia e as memórias literárias e vividas se misturam até quase se tornarem impossíveis de separar. Natal passado, minha avó, à beira da ceia, aos 88 anos, escolhe um poema de Manuel Bandeira para declamar. Apenas esse transcrevo na íntegra:

Espelho, amigo verdadeiro,
Tu refletes as minhas rugas,
Os meus cabelos brancos,
Os meus olhos míopes e cansados.
Espelho amigo verdadeiro,
Mestre do realismo exato e minucioso,
Obrigado, obrigado!

Mas, se fosses mágico,
Penetrarias até o fundo desse homem triste.
Descobriria o menino que sustenta esse homem,
O menino que não quer morrer,
Que não morrerá senão comigo,
O menino que todos os anos na véspera de Natal
Pensa ainda em pôr seus chinelinhos atrás da porta. (“Versos de Natal”)           

Verdadeira é a percepção do próprio autor acerca de sua produção literária, já na velhice: “e de fato cheguei ao apaziguamento das minhas insatisfações e das minhas revoltas pela descoberta de ter levado à angústia de muitos uma palavra fraterna”. Memória e literatura caminham juntas na obra de Manuel Bandeira. E seu Natal de 1939 foi também o meu Natal do ano passado, com uma palavra fraterna.

“– Não gosto de aparecer aos estranhos, meu querido – a AvóCatarina parecia triste na voz, fechou as janelas do quarto que ficou muito escuro. – Desce, meu querido, podem precisar de ti para entender a língua cubana. (...) Já não tenho medo do escuro 3.” A sabedoria da velhice e a memória também movem a literatura de Ondjaki, para quem “a história de Angola pós-independência está sendo escrita, em grande parte, pela literatura”.

O tempo das narrativas circunda um momento “que os mais-velhos chamam de antigamente” 3. Tempo da infância do autor – os anos 1980, Angola recém independente e sob um governo socialista em cujas ruas misturam-se ficção e as memórias que serviram de ponto de partida, e muitas vezes de chegada, à obra literária, “estórias em kimbundu da AvóMaria que não entendemos nada até hoje porque na escola nunca nos ensinaram a falar nem escrever kimbundu, (...) estórias da AvóCatarina que abre e fecha as janelas e muita gente anda a dizer que nós as crianças falamos à toa, que ela já não está lá em casa, da minha AvóNhé, que agora lhe chamamos mesmo AvóDezanove, estórias da PraiaDoBispo no tempo das tugas (...), para dizer que não esqueci, as estórias todas que a AvóDezanove me conta, tantas, com tantos nomes, com tanta gente e roupas, com danças e pianos e fados e viagens e casos, com falas e pensamentos e os carinhos e as pausas de silêncio que também fazem parte das estórias depois do almoço que ela conta.”3

Há uma linha tênue em que a realidade passa a ser ficção, ainda que os personagens sejam livres para transpô-la a qualquer tempo. Por outro lado, a verdade e a sua construção trespassa a individualidade do leitor e a interpretação feita das memórias alheias necessariamente recorre à vivência de quem as recebe. Assim, AvóAgnette é também, de certa forma, a nossa avó e observamos a mesma velhice que, como leitores, encontramos nos poemas de Manuel Bandeira.

“Naquele tempo o tempo então passava devagar”.  A percepção da passagem do tempo resvala no olhar do adulto que, voltado ao passado, reconstrói as representações psicológicas da criança que foi: “fiquei outra vez triste quando o camarada locutor confirmou que faltavam dois episódios para o fim de Roque Santeiro”v. Para nós, leitores brasileiros, a referência à nossa cultura aproxima-nos também daqueles que fomos nessa época, crianças ou não. Os significados criados, elaboramos na subjetividade infantil que ancora no afeto a demora ou rapidez das estórias narradas. O relato, texto afetivo por excelência, leva o leitor a essa ancoragem, ressignificando os momentos dos anos 1980 de Ondjaki menino à luz de nossas próprias vivências.

O mesmo questionamento pueril, quando voltado às questões políticas, mostra a veemência com que a sociedade começa a lançar seus braços sobre a vida. “Tu não achas que cada um deve mandar no seu país? Os portugueses tavam aqui a fazer o quê? (...) ninguém era livre, não vês isso? (...) Não eram os angolanos que mandavam no país, eram portugueses... E isso não pode ser... ”. Era Luanda. Mas, que cidade não poderia ser? A infância nos apresenta a desigualdade com a truculência que lhe é devida. Não há explicação ou entendimento que possibilite, à mente infantil, uma absolvição da injustiça. Crescendo, vemos que pessoas formam grupos e estes constituem forças. “Então também percebi que, num país, uma coisa é o governo, outra coisa é o povo” 6.
O movimento do mundo aponta, muitas vezes, para a inequidade que caracteriza as relações humanas; uma perspectiva que considera a classe, a raça, a origem e o dinheiro como pontos primeiros nas tomadas de valor. “Mas por que essa praia é dos soviéticos? – Não sei, não sei mesmo... Se calhar nós também devíamos ter uma praia só de angolanos lá na União Soviética” 6. Não tinham. O que tinham era um espaço (de)limitado. Quando criança, não se compreendem as diferenças. Como cidadão, o leitor, dessa criança se aproxima.

No lirismo das despedidas, no “terrível cheiro das despedidas”, o narrador se mostra por completo: “cheiro de amizades que se transformam em recordações molhadas com bué de lágrimas” que “chegam dentro de mim como se fossem fantasmas mujimbeiros que dizem segredos do futuro que eu nunca pedi a ninguém para vir soprar no meu ouvido de criança” 5. A dificuldade de conter as lágrimas, a não compreensão de um fim, a vontade de ter tudo de volta, de se sentir completo. Será a criança ou será, isso tudo, sermos humanos? Será apenas um pensamento, como o narrador mostra, à sombra de um abacateiro ou uma reflexão deitado em uma cama indo embora pra Pasárgada? São todos, todos os tempos.

“A inventar minutos meus, dentro dos minutos do tempo” 3. Não há para o narrador real-ficcional de Ondjaki uma possibilidade de ser, senão em Luanda. A visão de Angola é revelada pelos olhos da criança que acredita ter sido: “a cidade de Luanda cresceu no seu caos de tempo moderno, o antigamente continua sendo importante e belo devagarinho, adivinham-se passados como labirintos coloridos...” 3. Mas, vemos a criança que fomos a reinterpretá-la. Há uma origem. A memória, nesse caso, é a origem da literatura. A vida, a origem da memória.

A Luanda de Ondjaki é a nossa cidade natal. A PraiaDoBispo é o bairro do leitor, em que cada beco é conhecido, cada espaço, escancarado. E nunca havemos de não observar as mudanças do espaço – o que nele mudamos e o que em nós ele muda – “não se pode duvidar das estórias, há muita coisa que pode acontecer e há muita coisa que, se não pode, arranja-se uma maneira de ela acontecer (...) aqui em Angola já não dá pra duvidar que uma coisa vai acontecer”6. E Angola torna-se todo lugar.

“Ouvi dizer que os peixes são muito esquecidos. Deve ser bom. – Não lembrar os lugares e as coisas? Nem pensar. – Algumas coisas não querias esquecer? – Acho que não. Gosto da minha vida cheia de coisas para ainda contar a alguém. (...) – Não te preocupes com as estórias. As histórias boas de contar são as que nós inventamos. – Achas? – Acho.” 3 A memória é origem e faz-se destino. O narrador encontra em si o real e a fantasia que necessita para elaborar suas intenções literárias – percepção que Bandeira nos apresenta ao legar à poesia um conforto para a angústia. O leitor encontra, nas estórias contadas, suprimento para incrementar suas próprias e, se não, relembrar ou inventá-las. E é dado à memória o poder de reconstruir a vida como um filme: sabe-se de onde vêm, nunca há a certeza de onde se chega. “– Não sei onde é que as lesmas sempre vão, avó. – Vão pra casa, filho. – Tantas vezes, de um lado para o outro? – Uma casa está em muitos lugares – ela respirou devagar, me abraçou. – É algo que se encontra.”5

No último Natal, após o Manuel Bandeira, após o Ondjaki, este trecho acima que eu mesmo li à beira da ceia, minha avó me abraçou. E com ela às minhas memórias. E a AvóDezanove e a AvóCatarina me abraçaram no meu Natal de 1939. E, em busca do norte, do destino, encontrei o sul, a origem – uma espécie de porto-seguro. “Como se infância fosse um ponto cardeal eternamente possível”, em que “antigamente é um lugar, (...) um lugar assim dentro6”.


1 - BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. – Rio de Janeiro: José Olympio, 1986. (pp. 17, 28, 111, 117, 150)

2- BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. (pp. 19, 65, 132)

3 - ONDJAKI. AvóDezanove e o segredo do soviético – São Paulo: Companhia das Letras, 2009. (pp. 8, 49, 109, 150, 151, 184)

4 - ONDJAKI. Palestra ministrada na Univesidade de São Paulo em 29 de outubro de 2013.

5 - ONDJAKI. Os da minha rua – Rio de Janeiro: Língua Geral, 2007. (pp. 116, 117, 146)

6 - ONDJAKI. Bom dia camaradas. – Rio de Janeiro: Agir, 2006. (pp. 18, 28, 57, 108, 150)