Ilana Safro Berenstein

Complicar, para quê?

A polêmica interface Psicanálise-Educação

Querer e não querer. Ter atração e aversão. Fracassar para conquistar, estar para se ausentar. E vice-versa. Que difícil estar em um lugar que parece não se definir ou que se define justamente por reconhecer e acolher tantas indefinições, ambiguidades e limitações! Por que bagunçar para poder organizar? Sob um olhar grosseiro, a interface da Psicanálise com a Educação parece funcionar assim.

Considerar o famoso sujeito dividido (ou sujeito do inconsciente, para lacanianos) no contexto da Educação é atrever-se a prescindir de uma lógica linear, cartesiana, altamente estruturante e apaziguadora. É abrir mão do conforto do nomeável, dedutível, sabido e seguro. É não poder separar o racional ou cognitivo do irracional ou emocional, como em alguns lugares ainda se faz.

O sujeito é, sob esta ótica, dividido, mas a divisão não está aí. É mais complexo que isso. Reconhecendo através de lapsos, sonhos e sintomas a emergência do inconsciente, Freud estava desalojando a consciência da posição de comado que ocupava na Filosofia até então. Sugeria que, estando entremeado na nossa linguagem e nos nossos atos constante e desapercebidamente, o inconsciente nos tira do lugar de “senhores de nós mesmos”. A reviravolta trazida pela afirmação de Freud foi comparada na literatura àquelas trazidas por Copérnico e Darwin: a Terra não é o centro do sistema solar, o homem não é o centro da criação e, pois bem, a consciência não reina soberana sobre a nossa vontade! O sujeito não é só sua consciência, tem inconsciente; por isso pode, ao mesmo tempo, desejar e desejar não aprender/ crescer/ saber.

Outro aspecto trazido por Freud é a noção de dualidade pulsional cuja ideia principal é a de que o indivíduo se desenvolve impulsionado por forças que se opõem e lutam entre si (pulsões de auto-conservação e pulsões sexuais, princípio da realidade e princípio do prazer), enfatizando o conflito como motor do aparelho psíquico, o que o salva da permanência e da imutabiliade. Nesta seara, como se não bastasse, problematiza o desprazer considerando que o sujeito às vezes goza onde sofre, ou seja, tem certo ganho no sofrimento, ao assumir determinada posição em uma situação. Esta contraditória posição acrescenta mais uma dimensão ao sofrimento psíquico (a posição sadomasoquista) e à repetição sintomática na vida das pessoas.

Na Psicanálise, há poucos padrões de apoio e, segundo Leandro de Lajonquiére, não há nenhuma sincronicidade entre as etapas de construção das estruturas mentais e as etapas do desenvolvimento da libido, que seria o processo de constituição do sujeito, nesta abordagem. Este processo não respeita nenhuma cronologia por ter outra noção temporal e seguir um movimento em que cada etapa só se confirma pela retroação da etapa seguinte sobre ela – “o depois dá consistência ao antes” (aprés-coup). Isso, entre outros motivos, impossibilita qualquer síntese, por exemplo, freud-piagetiana.

Por fim, aproveitando ainda esta (não) comparação, convém notar que ao constatar tamanha verticalidade na construção psíquica de cada sujeito e ao reconhecer sua singularidade, reconhece-se também o quão misterioso e desconhecido ele é.

Ora, mas além de aparentemente complicado, o olhar da Psicanálise na Educação também é visto por muitos (como eu), como moderno, corajoso, inovador. Por quê? Se, como sabemos, e constantemente afirmam os estudiosos da citada interface, não existe pedagogia analítica nem psicopedagogia psicanalítica, qual é a relevante contribuição? Na prática, para que serve sentar na poltrona do não saber, se aventurar na complexidade do sujeito, quando objetivo é educar? 

Maria Cristina Kupfer aponta que até mesmo Freud hesitou em levar adiante suas próprias ideias sobre Educação: o educador deve promover a sublimação, mas sublimação não se promove, por ser inconsciente. Deve-se ilustrar, esclarecer as crianças a respeito da sexualidade, se bem que  não irão dar ouvidos. O educador deve conciliar a criança que há dentro dele, mas é uma pena que ele tenha esquecido de como era esta criança! E a conclusão, ao final de tudo: a Educação é uma profissão impossível. A filha de Freud, Anna Freud, foi uma das muitas analistas de seu tempo que se dedicou na direta aplicação dos conceitos analíticos na Educação, tentando levar aos professores este modo de ver a criança. No entanto, apesar do esforço, hoje pouco restou de sua obra.

Kupfer lembra que a dificuldade de aproximação dos discursos em questão já vem de tempos em que a Psicologia - que tem como objeto o comportamento, diferente da Psicanálise, que tem como objeto o sujeito -, era mais influenciada pela Psiquiatria e tentava se adaptar ao pensamento pedagógico desenvolvimentista. Muitos autores sérios e criteriosos fizeram um trabalho árduo para separar o joio do trigo (psicologia/psicanalise, pedagogia/educação) e muitos psicanalistas colhem até hoje a devida desconfiança herdada deste contexto, no qual o termo “emocional” abrangia tudo o que não era pedagógico e que, segundo a autora, vinha carregado de uma tradição teórico-filosófica que entende as emoções como veneno para a alma. Foi o tempo da lamentável “psicologização da educação”.

Mas, tendo passado por esta fase em que foi preciso gritar por todos os cantos a impossibilidade do casamento entre a Psicanálise e a Educação, talvez agora se possa tirar dela algum proveito. Isto pode acontecer a partir de uma postura menos radical do que tal conhecimento pode agregar nas discussões deste campo.
Voltemos, então, à grande pergunta: como? A resposta, neste caso, opinativa, infelizmente é tão complexa, parcial, dinâmica e inacabada quanto o tal sujeito. Mas com o perdão da simplificação e perenidade, talvez aqui necessária e, espero que, funcional, ousarei algumas palavras.

Não é a Psicanálise como técnica que se faz útil para a Educação, mas a própria compreensão de sujeito. Como apontou Mannoni, sua teoria pode contribuir na formação do pensamento do educador. Logicamente isso merece mais explicação.

Se o educador que bebe nas fontes da Psicanálise realmente se disponibilizar e se apropriar do que ela tem a oferecer – e se não se propuser a fazer isso com certa profundidade, talvez seja melhor nem começar! -, ele vai supor um sujeito em cada um dos seus alunos. Isso fará com que possa querer educar cada um deles, o que é muito diferente de querer, ao mesmo tempo, falar com todos. Porque, quando se fala para alunos, simplesmente, tende-se a tentar buscar suas semelhanças para construir um “público alvo”, e de certa forma, uma massa. Quando se fala para muitos sujeitos, sabe-se que se mira em um algo para atingir tantos outros alvos quanto sujeitos houver. Essa percepção faz toda a diferença tanto para o educador e como para o aluno, que faz parte de um grupo e continua sendo único. E vale lembrar que o reconhecimento da singularidade e do enigmático no sujeito em nada tem relação com o afrouxamento do coletivo e da Lei. Ao contrário, a Psicanálise reforça a importância destas instâncias. Mas isso já é tema para outro artigo.

Esse educador vai entender que o sujeito se constitui na e pela linguagem, sendo feito e efeito dela. Vai valorizar, então, seu trabalho como uma das práticas sociais responsáveis por inserir o sujeito na linguagem e torná-lo capaz de produzir discurso, sobre o mundo e sobre si mesmo. Vai perceber que é a relação com o conhecimento que ele quer transmitir que marcará a relação de cada aluno com este conhecimento, de acordo também com a subjetividade de cada um. Vai reconhecer que seu olhar para cada aluno é matéria prima da constituição de como eles olharão a si mesmos. São as marcas do desejo que estão em jogo.

Observando a importância constitutiva que o outro, os outros e seus diversificados olhares têm no sujeito, vai aceitar e acolher até mesmo o efeito ilógico e ambivalente, citados no início do texto. Nas palavras de Kupfer, vai aprender que visa um alvo e acerta outro, reaprende que visa à consciência de seu aluno, mas atinge o sujeito.(...) Talvez abandone as técnicas de adestramento e adaptação, renuncie à preocupação excessiva com métodos de ensino e com conteúdos estritos, absolutos, fechados e inquestionáveis.

Ao contrário disso, talvez apenas coloque os objetos do mundo a serviço de um aluno que, ansioso por encontrar suas respostas ou simplesmente se fazer dizer, escolherá nesta oferta aqueles que lhe dizem respeito, com os quais esteja implicado, por seu parentesco com aquelas primeiras inscrições que lhe deram forma e lugar no mundo.
Assim, incluir a dimensão do sujeito no seu aluno realmente não simplifica, nem muito menos dirige o professor para uma técnica na sua atuação. E pior: pode trazer e sustentar mais questinamentos do que respostas. Mas torna mais complexa e rica e, de certa forma, muda sua relação com ele e, consequentemente, com a (impossível, segundo Freud) tarefa de educar. Para melhor, acredito!


Bibliografia:

Kupfer, Maria Cristina Machado – Educação para o futuro: psicanálise e  educação – São Paulo; Escuta, 2007.

Kupfer, Maria Cristina – Freud e a educação – O mestre do impossível – Série Pensamento e Ação no Magistério - São Paulo; Editora Scipione, 1989.

Lajonquiere, Leandro de - De Piaget a Freud: para repensar as aprendizagens. A (psico)pedagogia entre o conhecimento e o saber – Petrópolis; Vozes, 2007.

Mannoni, Maud – Educação Impossível. São Paulo, Francisco Alves, 1977.